O terror como punchline humorística em Get Out


O cinema tem como principal função apenas entreter, assim como qualquer outra forma de arte. Você pode dar "n" motivos para uma obra ser boa, mas se ela não entretêm, ela não serve para nada. Tendo isso em mente, eu sinto falta de um cinema um pouco mais descompromissado; eu sinto falta de contos e crônicas sinceras, coisas que só vemos em produções independentes que em sua maioria se quer chegam por essas bandas.
Portanto, ver um filme como Corra fazendo sucesso tanto entre o público de nicho e o público geral, acabando por ser exibido com certa relevância, chega a emocionar. Não que isso automaticamente torne o longa bom, mas é que a sua proposta é tão simples e ao mesmo tempo tão cheia de nuances e propósitos, que é difícil não torcer para que dê certo.
Corra deu certo e não só isso, é um respiro no gênero tanto de terror quanto de comédia. Ele não é inovador, mas a sua exótica combinação de gêneros culmina em uma história bem executada, sem a necessidade de ser megalomaníaca, enquanto leva importantes reflexões sobre a sociedade atual. Muito mais do que o debate sobre preconceito, Get Out é bem sucedido por usar o terror como punchline humorística. Mas calma aí, o que é punchline humorística? E como isso pode ser usado no terror?

Como a punchline funciona na comédia


Para entender o terror construído em Corra, precisamos primeiro entender de piada e punchline. Você sabe como funciona uma piada? Ela se constrói principalmente sob a estrutura: storytelling + punchline = humor. O storytelling se trata da narração; o ponto que situa o ouvinte em determinado contexto e causa identificação. Ali o receptor será captado e decodificará certa referência, pois aquilo faz parte do seu universo. Usemos como exemplo a clássica piada: "Por quê a galinha atravessou a rua? Para chegar do outro lado". 
O receptor antes de tudo precisa saber o que é uma galinha. Poderia ser outro animal? Sim (tanto que já ouvi essa piada feita de outras formas), mas com certo cuidado, pois a galinha cumpre a função de se conectar com o ouvinte e causar certa estranheza. Mesmo que galinhas não pensem, automaticamente você se pegará questionando: "ué, por que a galinha atravessou a rua? Será que ela tava com fome? Fugindo de alguma coisa?", mil coisas podem vir a sua mente. Basicamente temos uma questão que fará a pessoa tentar pensar de forma lógica. O que o ouvinte não percebe é que talvez não haja resposta lógica e nem seja essa a intenção. Tentar resolver o problema parece quase um mecanismo automático. Você chega a visualizar a tal galinha pensando em atravessar a rua.
Logo vem a resposta, contrapondo qualquer expectativa: "Para chegar do outro lado". Esse é o punchline, basicamente uma linha de soco (em uma tradução ao pé da letra). O punchline é a reviravolta, ele deve contrapor o que foi dito, trazendo certa surrealidade às expectativas do receptor. O comediante tem que saber prever o que o público espera e surpreendê-lo - usando, obviamente, das referências. Nesse caso, depois do ouvinte pensar tanto e considerar tantas coisas, o locutor revela algo estupidamente óbvio. Não imaginar algo tão simples faz com que a pessoa veja o quão boba ela é e talvez o quão boba a situação é. A risada vem.

Como a punchline funciona no terror


Quando falamos de roteiro em geral, o punchline se refere à reviravoltas (Cole ao descobrir que Malcolm está morto; narrador ao descobrir que ele mesmo é Tyler Durden; etc) e, portanto, no terror isso está aliado ao susto/elemento surreal. Temos primeiro o storytelling, contando uma história comum que se aproxima ao espectador; aos poucos temos elementos surreais que vão sendo adicionados, que "quebram" a realidade. Essas "quebras" usam de referências para aterrorizar o público.
Por exemplo: vamos construir uma história de terror - criança X vive drama familiar. A história que cativa inicialmente é o drama comum, que reflete em todos. Por quê escolher uma criança? Pois uma criança é mais vulnerável e todo mundo consegue se colocar na pele dela. 
A tal criança começa a ver coisas estranhas. Lá vem as quebras: a realidade da criança se apresenta como a mesma que a nossa, entretanto, surge algo estranho que questiona a sua percepção. A expectativa natural é que algo ruim vai acontecer. Lembra da galinha? Você fica se questionando por que ela atravessou a rua. Aqui você fica se questionando o que irá acontecer.
Essas "quebras", ou mini punchlines, trabalham com as referências comuns. Um ursinho carinhoso todo fofinho não vai causar medo pois é o referencial de amor, agora o medo dos mortos, demônios ou qualquer entidade sobrenatural, permeia a mente até do mais ateu, principalmente pela religião ter papel crucial na nossa construção social. 
Daí que após questionarmos tanto, finalmente surge o tal monstro: um bom terror vai impactar com algo que o espectador não conseguiria imaginar. Algo que trabalha com as referências comuns, mas talvez as amplie de forma emocional. Da punchline vem o susto, do susto o medo de que isso aconteça com você.

A diferença entre comédia e terror


Nos dois exemplos que dei fica claro como o terror e a comédia têm paralelos. O motivo principal se desdobra em muitos outros, mas essencialmente é a surpresa. Mas e a diferença? A diferença se faz no sentido da surpresa. Enquanto a surpresa do terror faz a realidade se tornar mais pesada, adicionando elementos para o storytelling, a comédia torna a realidade mais leve pois contrapõe o storytelling, mudando o que foi construído anteriormente. No terror você confirma as expectativas do público, mas de forma inimaginável; na comédia você subverte a expectativa do público, também de forma inimaginável. Ironicamente, para causar reações tão opostas, são usadas estruturas parecidas. 

Como a comédia e o terror trabalham em Get Out


Você sabe o que é sátira?
De acordo com a Wikipedia, "A sátira é uma técnica literária ou artística que ridiculariza um determinado tema (indivíduos, organizações, estados), geralmente como forma de intervenção política ou outra, com o objectivo de provocar ou evitar uma mudança", ou seja, é uma referência jocosa à realidade. Por isso, ver Get Out como apenas um filme de terror é diminuir muito a sua mensagem, e vê-lo apenas como um filme de comédia é desmerecer a seriedade dos temas construídos. Ele é os dois e tudo isso se liga, além da estrutura de punchline, pela sátira.
A sátira tem aspecto irônico (jocoso), mas não necessariamente é engraçada. É o que vemos no longa:
ele inicia com uma aura leve, bastante descompromissada, já colocando em pauta as problemáticas raciais. Na trama, Chris Washington (Daniel Kaluuya) é um fotógrafo negro prestes a conhecer os pais de sua namorada branca (Alisson Williams). O momento que por si só já é deveras problemático, fica pior por causa dos atritos raciais - o fato de ser um relacionamento interracial já é motivo de debate logo nos primeiro minutos. Por enquanto temos apenas um problema comum, que dá alguns indícios de que terá algo maior. Rod (Lil Rel) é um reduto puro da comédia em si, enquanto Chris vai sendo imerso em uma trama de terror. O encontro dos dois gêneros está implícito na cena em que o rapaz fala com o amigo pelo telefone e este diz, de forma exagerada, para ele desistir de visitar os pais de sua namorada. Claro, Chris não leva o conselho a sério.


Logo, aquilo que suspeitamos sutilmente (a casa dos Armitage proporcionará algum acontecimento) se confirma aos poucos. A ideia é ir colocando o protagonista gradualmente em um ambiente aterrador, tendo como fio condutor o tal debate racial. Você se pergunta: por quê os empregados agem desse jeito? O que acontece nesta família? O que acontecerá com o protagonista?
Eu diria que esta parte, de fomentação de clímax, é genial. A todo momento vemos críticas a forma como os negros são representados e entendidos como seres humanos, de um modo sutil e direto. A hipnose é a condução para o surreal, intensificando as intenções da trama.

A virada


A virada se faz quando finalmente tudo é revelado. O punchline aqui não é tão forte nem importante, pois a própria história já dava pistas claras do que aconteceria. É intencional que você chegue a essa altura já com uma noção do que irá acontecer. Isso é ruim? Não! Pois é justamente com o óbvio que Jordan Peele (diretor e roteirista) realiza o punchline do terror. Essa obviedade é característica da piada. Lembra da galinha? É exatamente o que acontece. Rod já nos diz mais ou menos o que irá acontecer logo no começo, mas a ideia é tão surreal, tão boba, que não acreditamos. Até o enredo ser de fato revelado, negamos o conceito que virá a ser desenvolvido.
Esse conceito, de transição de mentes, vira então mote principal. Chris continua sendo a nossa ligação com o real, mas agora todo o ambiente já se tornou bizarro. O filme decide então, ao invés de ficar fomentando suspenses desnecessários, jogar a história de vez em uma descida direto para a bizarrice. Essa bizarrice torna o aspecto da produção no de um filme B, que parece querer apenas impactar o espectador com cenas violentas. Só que aqui, Peele usa esse aspecto para desenvolver o surreal imaginado, mas não esperado, usando do horror para criar no espectador um misto perfeito de riso, impacto e terror. Você dá risadas pelo exagero, mas se surpreende com o gore e a carga dramática. Quando a matança adentra, não há mais o que esperar; depois da virada, o filme é uma grande surpresa conduzida.

O final


Por fim, quando parece que a comédia foi esquecida e o longa entra em uma sequência de dramaticidade, terror, horror e bizarrice, ele volta para o cômico, entretanto, com ar tenebroso. É o que chamam de humor negro?
Caso você não tenha percebido, no final Rod basicamente fala "eu avisei"; quase como se fosse uma grande esquete de humor (não a toa, Peele era conhecido por conta de esquetes no Saturday Night Live).
Ora, depois de tanto sufoco e uma grande sequência de mortes e tristeza, vem o amigo falastrão para mostrar que estava certo desde o começo, frente ao horror inimaginável vivido pelo protagonista.
Em suma, com recursos de uma produção cinematográfica, foi criado um bloco de humor, que de fato é terror, mas com o propósito ácido de criar uma crítica social relevante, sem perder as risadas como objetivo, mas também sem perder o espanto. Um desenvolvimento peculiar e inovador, que cria uma junção de dois gêneros: sem um o outro não existe e vice-versa.

Por Mateus Vieira

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Trailer do filme:


Ficha técnica
Nome: Get Out (Corra!)
Ano: 2016
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Gênero: terror, comédia, suspense, thriller
Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener, entre outros

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